O projeto "642 Coisas Sobre as Quais Escrever" tem por objetivo incentivar novos escritores a trabalharem sua criatividade, discorrendo sobre temas aleatórios e desconexos (veja todos clicando aqui). Esse é o meu segundo texto pro projeto, sendo que o primeiro está arquivado no menu "Textos Autorais". E eu estou sendo formal assim para não precisar falar sobre a minha atual ausência em relação ao blog... Acho que consegui, haha.
Lembrem-se de que uma parte muito importante desse projeto consiste no retorno que os leitores dão aos escritores iniciantes, portanto, não se esqueçam de deixar sua opinião nos comentários. [:
Tema #70 - Descreva duas visitas ao circo a partir do ponto de vista de alguém que é bipolar. Em uma visita, ele(a) é maníaco(a), e em outro, ele(a) está em um poço de desespero.
O circo. Não existe lugar mais depressivo que sob aquela lona pintada de
cores falsamente alegres. Podem enganar crianças catarrentas, mas não a mim. O
palhaço com a maquiagem visivelmente refeita após borrá-la toda se desfazendo
em lágrimas. Os mágicos que nem se importam mais em parecerem convincentes ao
executar seu ilusionismo barato. Os animais, surrados e presos em
vagões-gaiolas, quase tão enclausurados quanto os próprios executores do
espetáculo.
Há anos já havia feito a promessa de nunca pisar em lugar tão
repugnante. E o que me fez quebrar essa promessa pela primeira vez foi uma
mulher.
Antes de mais nada, vamos falar de tal menina-mulher. Tão iludida quanto
qualquer criança sentada nas arquibancadas carcomidas daquele chamado “Circo
Liberdade”. Não duvido que, se eu não estivesse tão apaixonado por ela à época,
teria a visto usar suas fraldas de pano imundo enquanto comia um pouco do ranho
que lhe descia denso pelas narinas mal lavadas.
Não vi nada disso. Como eu disse, estava apaixonado por aquela mulher.
Não vi como o show de malabarismos era executado por um senhor triste,
segurando tochas flamejantes, que já devia estar recebendo sua aposentadoria e
vivendo tranquilo há anos. Não vi os trapezistas, andróginos e sem qualquer
traço de satisfação no semblante, voando de um lado para o outro, cada um em
seu collant surrado. Tudo o que eu via era o sorriso de minha amada.
Haveria a menor possibilidade dela não estar vendo nada daquilo? Haveria
ignorância tamanha para se resignar a tudo o que a rondava e ainda sorrir para
quem a acompanhava nessa balbúrdia?
Na segunda vez que fui ao circo, não consegui me conter. A concentração
de coisas erradas sob aquelas tendas eram quase tão grandes quanto a de pessoas
conformistas e egocêntricas, se deliciando com a humilhação do próximo, com seu
choro e sua raiva, tudo engolido goela abaixo para não atrapalhar os sagrados
minutos de espetáculo. Era desesperador, era incontrolável. Eu tinha de fazer
alguma coisa.
Me levantei, destacando-me na arquibancada de cabeças rosadas e obtusas.
O desespero tomava conta de todo o meu corpo. Não um desespero negativo, mas um
desespero libertador. Eu tinha que dividir aquilo, tinha que mostrar a verdade
a todos os presentes. Tomei por obrigação apresentar a libertária ao Circo
Liberdade.
Minha epifania foi interrompida por um forte puxão em minha camisa,
forçando-me a sentar novamente.
“O que está fazendo?” Ela tinha razão. Eu vim ao circo para me divertir
ao lado da mulher que amo, não para abrir os olhos de uma multidão entorpecida.
Assim que ela me puxou de volta ao meu assento, percebi que talvez meu
desespero fosse algo dúbio, opiniões vazias sobre um circo que mal conhecia. Eu
podia ter sido um maníaco que mantinha distância de circos a vida toda, mas
naquela noite eu era um maníaco apaixonado.
“Bobagem!” Ouvi minha própria voz ressoar em pleno ar. Na sequência,
vieram os “psssssssssiiu” e a careta de advertência de minha amada.
“Não veem, infelizes?!” Falei, me levantando, outra vez tomado pelo
desespero me ardendo ao peito. “O circo é imundo e o espetáculo é unilateral.
Façam seus filhos rirem do sofrimento alheio ou me ajudem a libertar essas
pobres almas!”
“Não!” Me sentei mais uma vez, retomando o controle do corpo enquanto
perdia o da boca. “O circo é um lugar de felicidade ilimitada! Não importa a
nós as agruras na vida do palhaço ou a mágoa estampada no rosto do
contorcionista. Só nos importa o momento, e o momento é de felicidade e muito
amor!” Fechei os olhos e a imagem de minha amada sorrindo se instalou no
interior de minhas pálpebras. Tão bela e tão falsa. Seu semblante fez um arco,
saindo da felicidade e se encaminhando para a insanidade completa.
Abri meus olhos e a imagem dela evaporou antes de completar o ciclo.
Entretanto, o meu estava completo.
“Joguem lixo no picadeiro e destruam os sonhos de cada um desses
circenses! Ensinem os pequenos o que é o ódio e conservem sua estupidez para a
posteridade!” Novamente me levantei e comecei a andar rumo ao espetáculo.
“Hipócritas! Como podem ser tão cegos?!”
Me detive a meio caminho do picadeiro, sobre degraus que praticamente se
desfaziam sob meus pés. “Voltem sua atenção para a maravilha que é o circo,
ignorem as cicatrizes nos animais, ignorem a anorexia dos ilusionistas, e vivam
essa noite como se fosse a última!” Comecei a dar passos de volta ao meu
assento, envergonhado, tanto pela situação como pelo desvio de minha filosofia
de vida. Mas não por muito tempo.
“Viver essa noite como se fosse a última?! O que diabos deu em você?”
Dei meia volta e comecei a correr degraus abaixo, sendo observado tanto pelo
público quanto pelos integrantes do circo, que interromperam o espetáculo.
Voltei a subir a escada, gritando:
“Me aconteceu o amor! Posso estar louco, mas não deixarei que você
destrua minha última chance de fazer tudo dar certo!” Olhei para cima,
procurando por meu lugar, ao lado de minha amada.
“Hahahaha! Você está muito mais louco do que pensa, não é?” Apesar da
busca incessante, não avistei a mulher que amava naquela arquibancada. Nem o
menor sinal de seu assento vazio. Nada.
“O que está acontecendo aqui?! Onde está a razão do meu amor
incondicional? O que você fez, filho de uma...” Segurei minha própria camisa
pelo peito. A insanidade brilhava em meus olhos, enquanto o público do circo
parecia se levantar e correr desesperado rumo à saída.
“O circo é o mais perfeito antro de depressão da humanidade! Sumam daqui
e deixem essas pessoas seguirem uma vida digna! A felicidade não é adquirida
comprando um bilhete, ainda mais quando se é para ver pessoas descrentes da
própria capacidade de realizar, de sonhar e de viver! Corram, vagabundos!
Corram até encontrarem um resquício de piedade!”
“O que você fez com a minha amada?!” Empurrei minha camisa e tropecei em
um degrau. Cai e antes de rolar escada abaixo, já notei ter quebrado a perna em
pelo menos um lugar. A dor se disseminou por todo o meu corpo e eu ouvi meu
próprio urro, sem saber ao certo que parte de mim o havia soltado.
No pé da escada, deitado de costas e sem a menor capacidade de me mover,
a imagem da insanidade em minha mente foi substituída pela imagem de lona
queimando com labaredas em constante frenesi.
Pessoas me pisotearam, mas a dor não podia ser maior do que a que eu já
sentia. Fechei meus olhos e visualizei a imagem idealizada de minha amada uma
vez mais. Essa imagem novamente foi fazendo um arco, da beleza e felicidade à
insanidade completa. Mais uma vez, porém, o ciclo não foi completado. Antes
disso eu já havia sido consumido pelo fogo ardente.
Na primeira vez que fui ao circo eu era um fraco. Pobre e miserável
homem. Me disfarçando entre a multidão, apenas para satisfazer os desejos
vazios de minha menina-mulher. O espetáculo chegou ao fim como qualquer outro
protagonizado por aquela trupe: Triste, insignificante e vergonhoso.
Coincidentemente, foi assim também que teve fim o meu relacionamento. Aquela
meretriz, sempre insatisfeita, sempre cegando a si própria em uma carapaça de
criança mimada. Bem feito para ela, ter morrido de maneira tão trágica!
Na segunda vez que fui ao circo, aí sim! Fui o destaque. O mesmo
desespero maníaco que havia tomado meu ser na outra vez, agora ganhou vida. Eu
estava sozinho, não poderia ser diferente, era quase uma obrigação, visto minha
missão ali. Desconsiderando alguns inconvenientes advindos de minha mente
não-tão-lúcida, que teimava em enxergar minha falecida amada em todos os
cantos, consegui consumar meu objetivo.
Confesso que ainda havia em mim, ao entrar pela segunda vez naquele
chamado “Circo Liberdade”, esperança de que seria um integrante do público quem
iria acatar minhas palavras e dar um fim à infâmia. Mas, no fim das contas,
foram os próprios circenses, unidos, que sucumbiram à própria depressão e
incendiaram o circo por completo. Foi satisfação que eu senti ao ver aquela
lona de cores falsamente alegres arder, junto comigo, toda a trupe e mais um
considerável número de ignorantes egocêntricos.
Olá
ResponderExcluirEu gostei muito do texto! A dualidade do protagonista é bastante interessante e você ainda pegou meu ponto fraco: circos. Adoro histórias que se passam nesse ambiente. Esse projeto é bastante interessante pra estimular a criatividade, mas eu acho que ficaria muito preso nos temas e não conseguiria me sair bem. Minhas histórias brotam do nada haha Parabéns pelo texto!
Abraço!
Obrigado, Matheus. :)
ResponderExcluirMesmo assim, talvez tentar escrever sobre um dos temas do projeto pode ser legal. Não precisa publicar se ficar ruim, mas vale de experiência, hahah.
Grande abraço!
Seu texto ficou muito bom!
ResponderExcluirAchei perfeita a forma como você combinou a loucura e a lucidez, tornando o texto envolvente e intrigante.
Parabéns :D
Colecionando Primaveras
Obrigado, Ellem. ^^
ResponderExcluirAbraço!
Muito bom o seu texto, interessante, bem escrito, muito bem descrita a loucura e a confusão do protagonista.
ResponderExcluirParabéns!!!
Valeu, André.
ResponderExcluirGrande abraço!
Simplesmente apaixonante. Adorei o modo como você escreve e sua escolha de palavras também. O assunto já era criativo, mas a forma como você transcorreu o texto foi mágica. Amei!
ResponderExcluirEsse projeto é demais, né? Vou continuar acompanhando seu blog só esperando seus próximos textos.
Beijos,
Bi.
- www.naogostodeunicornios.com
Obrigado, Bianca!
ResponderExcluirReparei que você também participa do projeto. Em breve darei uma olhada em seus textos. ;)
Grande abraço!